segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Por conta da imaginação...

O primeiro livro do ano é um clássico da literatura universal. Aviso de antemão que a obra tem um grande problema: não tem final. Nikolai Gógol planejou escrever uma trilogia sobre a vida na Rússia feudal, mas não conseguiu realizar seu sonho, tendo deixado para nós apenas a primeira parte da história e uns capítulos da segunda. Isso não tira a majestade do texto, mas decepciona um pouco quando ficamos sem saber o destino do herói.

“Almas Mortas” foi lançado em 1842 e é um dos principais precursores do realismo russo. Foi uma narrativa difícil de acompanhar porque muitas palavras me eram desconhecidas, então se você for lê-lo recomendo que esteja com um bom dicionário a postos. Se quiser fazer quadros mentais nítidos da paisagem, o computador também será essencial, pois muitas das árvores e flores descritas não são vistas nessa parte do mundo. Mas vamos então para a história.

O personagem principal, Pável Ivánovitch Tchítchicov, é tão malandro que bem poderia ser brasileiro. Tentando comprar “almas mortas”, ou seja, servos mortos que ainda não tinham entrado no último recenseamento, nosso herói cruza a Rússia na sua sege junto com seus dois empregados. Suas viagens nos permitem conhecer personagens cada vez mais pitorescos, embora ao mesmo tempo sejam dignos de pena.

A cidade de N. é a primeira parada do protagonista. É uma típica cidade provinciana, cheia de mesquinharias e fofocas. Tchítchicov, com seu jeito amável, logo se faz querido dos moradores, principalmente daqueles que ocupam os cargos mais altos do funcionalismo público, porque são os que ele bajula mais. Ao descrever suas transações com estes personagens, Gógol faz um quadro mordaz da corrupção da burocracia na Rússia Czarista. As cenas que ilustram essa corrupção são narradas sutilmente, mas um pouco de atenção nos revela o tom sarcástico do escritor. Confesso que poucas vezes me deparei com uma ironia tão fina, acredito que nem mesmo Dostoiévski consegue escrever como ele.

O porquê de Tchítchicov comprar almas mortas só é revelado no fim da primeira parte. Dessa forma, acompanhamos sua peregrinação pelas casas dos pomiêchtchiki – grandes proprietários rurais – sem entender porque ele insiste tanto em comprar os mortos. Cada encontro com um fazendeiro é uma experiência diferente. Uns são bobos, outros loucos, outros pobres e outros ricos esbanjadores, enfim, é um quadro e tanto dessa classe russa.

Mas os melhores momentos vêm logo a seguir, quando os moradores de N. descobrem o estranho negócio que o recém-chegado anda fazendo. Como o leitor, eles também não entendem para que servem os servos mortos e desconhecem a história de vida de nosso herói. Assim, as mais estapafúrdias identidades são dadas a Tchítchicov, alguns chegando a pensar que ele é o próprio Napoleão. Essas cenas são simplesmente hilárias, não parei de rir enquanto lia. Mais uma vez tenho que elogiar Gógol pela excelente qualidade do seu humor.

Transcrevo a seguir uma parte da cena:

“Entre diversas hipóteses bastante interessantes surgiu por fim uma, que fica até estranho mencionar: se não seria Tchítchicov outro senão Napoleão disfarçado; que há muito tempo os ingleses invejam à Rússia a sua extensão e vastidão, ao ponto de já terem aparecido caricaturas onde se via um russo conversando com um inglês: o inglês está de pé, com a mão atrás das costas, segurando um cão, e o cão representa Napoleão, e o inglês diz ao russo: ‘Olha aqui, cuidado, se não te comportas, solto o cachorro em cima de ti!’. E então, quem sabe agora eles soltaram o cão da ilha de Santa Helena e o açularam sobre a Rússia, e agora ele está penetrando na Rússia como Tchítchicov, mas na realidade não é Tchítchicov coisa nenhuma.

Está claro que os funcionários não acreditaram nisso; todavia, ficaram pensativos, e cada um, examinando o caso consigo mesmo, achou que o rosto de Tchítchicov, se ele se virasse e ficasse de lado, lembrava muito o retrato de Napoleão. O chefe de polícia, que estivera na campanha de 1812 e vira Napoleão em pessoa, não podia sequer deixar de confessar no seu íntimo que Napoleão não era mais alto que Tchítchicov, e que a sua compleição física também era do tipo que não se pode chamar de gordo demais, mas tampouco se pode dizer que seja magro demais.”

Pável Ivánovitch, vendo que estão começando a desconfiar de seus “negócios”, parte às pressas da cidade, da qual não voltamos mais a ter notícias. Durante o caminho, o escritor finalmente nos revela quem é ele de verdade e qual seu interesse em comprar servos mortos. A história de vida de Tchítchicov é simples e trágica: um pai ausente, maus conselhos, privações e uma série de aspectos que resultam numa ambição desenfreada. Ao descrever suas andanças pelo serviço público mais uma vez nos deparamos com a sórdida corrupção da burocracia russa. Mas sinceramente, aqui não é muito diferente, é?

Segundo o narrador, Tchítchicov compra almas mortas a preço de banana para depois vendê-las ao estado e com isso fazer muito dinheiro. Como as almas ainda não estavam recenseadas, ele pode vendê-las como se fossem servos vivos. Simples e escuso. Feito esse esclarecimento, acaba-se a primeira parte.

Sobre a segunda parte não vou falar muito porque é bastante incompleta. Surgem novos personagens, alguns fascinantes, mas só podemos ter um breve vislumbre deles já que esta só conta com alguns capítulos completos. Tchítchicov continua comprando as almas mortas, mas agora tem outro interesse em vista: quer se tornar um pomiêchtchiki.

Muitos estudiosos afirmam que Gógol perde o tom nessa parte e realmente algumas cenas têm uma abordagem tão diferente que parecem de outro livro. Apesar disso, adorei alguns momentos e reflexões e sinto uma pena imensa que Gógol não tenha terminado a história. Abaixo transcrevo um trecho dessa segunda parte:

“Andrei Ivánovitch sobressaltou-se. Pensou que se tratava de um funcionário do governo. Aqui é preciso contar que, na juventude, ele andara envolvido em certo caso pouco sensato. Dois hussardos de tendências filosóficas, influenciados pela leitura de certas brochuras, um estudante de estética que não concluíra o curso e um jogador falido fundaram uma espécie de organização filantrópica sob a direção e supervisão de um malandro velho, maçom e também jogador, mas homem de grande eloquência. Essa sociedade propunha-se uma ampla finalidade: proporcionar felicidade duradoura a toda a humanidade, desde as margens do Tâmisa até a península de Kamtchatka. A caixa de fundos requerida era enorme: angariavam-se donativos descomunais das almas generosas. Onde foi parar esse dinheiro, só o sabia o dirigente supremo da sociedade. E para essa sociedade atraíram-no os seus dois amigos, pertencentes à categoria dos homens revoltados, bons rapazes, mas que, graças às frequentes libações em nome da ciência, da instrução e dos futuros serviços à humanidade, transformaram-se em autênticos beberrões.”

Infelizmente, como eu havia dito, não existe um final escrito. Cabe a nós, leitores, darmos asas a nossa imaginação para que esta elabore uma conclusão para a história de Tchítchicov. Para mim, este livro é mais bem lido em casa, com concentração e relaxamento. Eu precisei de dicionário e acho que muitos também precisarão. Pra quem quiser curtir um pouco do texto, acesse o link: http://www.youtube.com/watch?v=AJPX1hZ6xos. Dá até pra ouvir russo, bem legal. Abaixo confira um resumo da história do escritor.

A VIDA DO GÊNIO

Nikolai Gógol nasceu no dia 20 de março de 1809, em Poltava, Ucrânia. De uma família de médios proprietários rurais, foi muito influenciado pelas tradições do povo cossaco, nativo das regiões do sudoeste da Europa, principalmente do país natal do escritor.

Aos 19 anos parte para São Petersburgo, onde emprega-se como funcionário público. Nessa época inicia sua carreira literária, com narrativas inspiradas no folclore ucraniano. Desistindo da burocracia, torna-se professor de História num internato de raparigas e, mais tarde, dá aulas na Universidade de São Petersburgo.

Em 1836, encena-se pela primeira vez sua peça de teatro “O Inspetor”, uma grande sátira à corrupção da burocracia russa. Muito criticado pela peça, Gógol passa os quatro anos seguintes viajando pela Europa.

“Almas Mortas” é a obra-prima do escritor, mas também é uma das causas de sua morte prematura. Seus últimos anos são gastos escrevendo e reescrevendo a trilogia, que só tem a primeira parte publicada, em 1842. Gógol chegou a escrever a segunda parte, mas num acesso de loucura mandou seu empregado queimar o manuscrito, do qual só nos sobraram alguns capítulos. Nikolai Gógol morre em março de 1852, prestes a completar 43 anos, num estado de semiloucura. Instigado por um misticismo desenfreado, reza e jejua de tal forma que acaba por entrar em um estado de lenta agonia, da qual só se liberta com a morte.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O porquê.

Ler é uma das coisas mais saborosas da vida, não é? Nada como viver aquela aventura que sua humilde vida jamais abarcará. Nada como se extasiar com uma paixão que poucos têm a chance de experimentar. Entretanto, para mim, parte do prazer de ler um livro está no ato de discuti-lo. Quais suas influências, o que foi dito sobre ele ao ser lançado, as particularidades do escritor..., ou seja, tudo.

Assim que eu termino uma história me lanço numa pesquisa que só tem fim quando eu sacio minha curiosidade. Mas toda essa descoberta fica perdida se eu não tenho com quem compartilhá-la. Como minha mãe já não me aguenta porque diz que minhas conversas sempre giram em torno do livro que estou lendo, decidi criar esse blog.

Queria um título que conseguisse transmitir a minha ideia do que é um livro. Adorei a forma como a palavra “himeneu” soa desde o momento que a li pela primeira vez. Mais interessante é sua origem: Himeneu é o deus grego do casamento, um belo jovem convocado durante as cerimônias, já que sua ausência resultaria em um matrimônio desastroso. Dito isso, dentre os vários significados, “himeneu” poderia ser definido com sinônimo de casamento. E um livro é isso, simplesmente, um himeneu das palavras. Pode ser desastroso, como tive a oportunidade de comprovar diversas vezes, mas pode ser eterno e uma experiência arrebatadora.

Ler um livro é também uma cerimônia de casamento. Alguns se transformarão no ex-marido odiado; outros serão aquela breve, mas suave lembrança de um momento de sua vida; entretanto, alguns poucos serão seus companheiros durante o resto da jornada, serão aqueles grandes amantes, melhores amigos, únicos consoladores.

Enfim, queria compartilhar um pouco das minhas experiências no mundo da literatura: esse mundo que é o nosso, mas ao mesmo tempo não é. Enjoy it.