quinta-feira, 2 de agosto de 2012

UM POUQUINHO DE ROMANTISMO...

      Jane Austen é considerada por muita gente a figura mais importante da literatura inglesa depois de Shakespeare. Embora eu a adore, não iria tão longe. Entretanto, seu aguçado olhar sobre a sociedade do século XIX e a acidez de suas críticas tornam sua obra inegavelmente majestosa. Emma, lançado em 1814, é um dos livros mais famosos da escritora e sua protagonista uma das heroínas mais antipáticas que já vi. 
        Longe da digna e orgulhosa Elizabeth Bennet, de Orgulho e Preconceito, Emma é uma jovem mimada  e esnobe que adota o papel de casamenteira para tentar driblar o tédio. Tendo em alta conta a si mesma, ela  acredita ter encontrado o homem perfeito para sua amiga Harriet. O que ela não percebe é que o Sr. Elton, longe de estar apaixonado por sua amiga, deseja a sua mão em casamento. E aí começam todas as confusões em que essa menina se mete. 
        O começo do livro é um pouco cansativo e a pretensiosa Emma não contribui em nada pra diminuir essa sensação. Apesar disso, conforme a gente vai acompanhando o amadurecimento da protagonista o livro melhora e muito, de tal maneira que do meio pra o fim a leitura vai num embalo só. Ri demais com alguns diálogos e cenas, Jane é maravilhosa na hora de ironizar a fanfarronice da classe alta e burguesia inglesas. 
          O personagem mais marcante acaba sendo o Sr. Knightley, que segue o protótipo do Sr. Darcy (de Orgulho e Preconceito) - rico, nobre, elegante e de caráter. Outro tipo comum na obra de Austen, o jovem imaturo e ambicioso, reaparece na figura de Frank Churchill, mas tem final feliz. O noivado secreto, ingrediente comum em suas histórias, surge mais uma vez, mas é abordado de outra forma e os noivos são realmente uma surpresa para o leitor. Tenho que destacar o Sr. Woodhouse, o hipocondríaco pai de Emma, super engraçado, dá um diferencial na história. 
          Indicadíssimo pra todos, o livro é uma delícia e super romântico. Nada de choros e decepção, tudo muito tranquilo. Perfeito pra quem quer curtir algo leve, mas interessante e bem narrado.  

sábado, 28 de julho de 2012

Para passar o tempo (2)

      Logo depois de ler Precisamos falar sobre o Kevin senti que a próxima leitura precisava ser um pouco menos... apaixonante, estressante, maravilhosa. Até hoje minhas piores crises de identidade e choradeiras foram resultado de algum livro que me chocou. Sendo assim, decidi dar uma reanimada e, como já tinha explicado anteriormente, Agatha é minha cura pra esses momentos de estresse pós-leitura.
     A morte da Senhora McGinty foi uma grata surpresa para mim. Reencontrar Poirot e seus bigodes é sempre um prazer, principalmente quando tem algum assassinato escabroso no meio. Mas dessa vez o caso parecia ser o mais simples possível: uma idosa, numa cidadezinha interiorana inglesa, esconde seu dinheiro debaixo do assoalho. Um belo dia, seu inquilino necessitado a mata e rouba suas economias, sendo posteriormente preso e condenado à morte. E isso é o fim. Só que justamente aquele que prendeu o indivíduo, o Superintendente Spence, é o único que acredita na inocência desse homem. Conhecendo os talentos de Poirot de outra época, ele pede que o detetive reveja todo o caso para encontrar o verdadeiro assassino.
      Essa é, essencialmente, a base da história. A narrativa é bastante linear e somos bombardeados por um monte de pistas. A rainha do crime mais uma vez aproveita para desvendar um pouco mais do que há por trás da aparência beatífica do interior inglês. Dei boas gargalhadas com o "sofrimento" do sensível Poirot, mal instalado na única pensão de Broadhinny, onde a Sra. McGinty foi assassinada. Destaque também para a  divertidíssima  participação da Sra. Oliver, escritora de romances policiais.
       Sobre o desfecho é óbvio que seria absurdo eu revelar qualquer coisa. Não é impressionante, mas para aqueles que não leem muito Agatha é imprevisível. Quem está familiarizado vai se zangar um pouco com o repetido estratagema de determinado personagem não ser quem alega que é, mas nada que prejudique o bom momento que se passa com esse livro nas mãos. Eu recomendaria muito pra quem está começando a conhecer a escritora. Não é um livro maravilhoso, mas vale a lida. 

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Alguns dias de paixão

      Apaixonar-se por alguém ou por algo é uma das sensações mais sublimes e desesperadoras pela qual o ser humano tem de passar. Depois de muito tempo sem sentir essa sensação, tenho que confessar que eu me apaixonei. Durante três dias, só pude pensar em uma única coisa: no livro Precisamos falar sobre o Kevin. Ao comer, ao assistir a cobiçada versão estendida de O Senhor dos Anéis, ao dirigir... o único que podia fazer era refletir sobre a triste história da família Khatchadourian. Parece exagero? Então deixa eu te falar um pouco sobre essa obra magistral.
      Eva Khatchadourian é uma mulher do século XXI, embora temporalmente sua vida se restrinja às décadas finais dos 1900. Fundadora de sua própria empresa, é bonita, inteligente, bem-sucedida e feliz no casamento. Seu marido, Franklin, é um norte-americano típico, patriota, jogador de beisebol inveterado, enfim, o oposto de Eva. Em todo caso, eles eram felizes. Não tinham filhos, mas estavam satisfeitos. Porém, como tudo nessa vida, um olhar mais profundo revelava que algo fazia falta aos dois. O que era? Um filho, talvez? Tentando chegar a uma resposta, Eva, que perto dos 40 ainda não sentia nenhum impulso maternal, decide engravidar. E é em torno do fruto dessa gestação, Kevin, que a gira a narrativa. 
      A história é contada através de cartas escritas por Eva para seu marido. Nelas, essa mãe angustiada revisita toda a sua vida e a de sua família para tentar entender o que levou Kevin, aos 15 anos, a matar nove pessoas dentro de sua escola. Tenho que dizer que nunca simpatizei tanto com um narrador. Cruamente, Eva vai analisando cada evento, cada gesto, cada emoção, o que nos proporciona um texto de uma sinceridade arrebatadora.
      Mais do que analisar a sua própria história, Eva reflete profundamente sobre um dos maiores pilares -  e tabus - da humanidade: a maternidade.  Ao romper o laço mais sagrado de todos, ao não sentir amor pelo próprio filho, essa mulher consegue nos fazer pensar sobre algo que não se deve pensar. Ser mãe é lindo, maravilhoso, inestimável e pronto. Eva nos questiona: é tão simples assim?
      Apesar disso, a ponderação sobre a maternidade é apenas o ápice de reflexões mais profundas sobre a vida em família e sobre as emoções que se escondem sob a superfície do ser humano. Só posso afirmar que foi um gosto acompanhar o pensamento dessa mulher, cujo digladiar interno nos fornece uma das histórias mais brilhantes que tive o prazer de ler. Como sempre, abaixo vai um dos trechos que mais gostei:

"Portanto, meu receio não era apenas de virar minha mãe, eu temia ser mãe. Tinha medo de me tornar aquela âncora segura e estacionária que fornece a plataforma para a decolagem de mais um jovem aventureiro, cujas viagens eu talvez inveje e cujo futuro ainda não tem amarras nem mapas. Tinha medo de virar aquela figura arquetípica na soleira da porta - desmazelada, meio gorda - que acena adeuses e manda beijos enquanto uma mochila é posta no porta-malas; que enxuga os olhos com o babado do avental sob a fumaça do cano de escape; que se vira, desolada, passa o trinco na porta e vai lavar os poucos pratos que restaram na pia, sob um silêncio que pesa sobre a cozinha como um teto caído. Mais do que partir, eu tinha pavor de ser deixada. [...]
Franklin, eu tinha verdadeiro pavor de ter um filho. Antes de engravidar, minha visão do que significava criar uma criança - ler histórias sobre trens e casinhas com um sorriso no rosto, na hora de dormir, enfiar papinhas em bocas escancaradas - parecia ser a de outra pessoa. Eu morria de medo de um confronto com meu próprio egoísmo e falta de generosidade, com o poder denso e tardio do meu próprio ressentimento. Por mais intrigada que estivesse com o 'virar da página', sentia-me mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada na história alheia. E creio que foi esse terror que talvez tenha me atraído, da mesma forma como um parapeito nos tenta a dar o salto. A intransponibilidade da tarefa, sua falta absoluta de atrativos, foi o que, no fim, me seduziu."

      Acho que eu não poderia dizer mais nada sem desfazer um pouco o mistério do livro, então vou me restringir a isso. Super indicado para todos, é uma leitura tranquila, nada de dicionários e referências obscuras, mas, se você realmente quiser entender sobre o que Eva está falando, tem de parar por um momento para refletir e absorver suas palavras - a leitura é quase que um exercício filosófico. Simplesmente é um livro que se deve ter na estante. Eu já estou providenciando o meu.

domingo, 22 de julho de 2012

Para passar o tempo

          Agatha Christie é uma das minhas escritoras favoritas. Adoro lê-la entre dois romances pesados porque ela me permite dar uma pausa para respirar, para me divertir e para não me deprimir com alguns livros que leio. Suas histórias me propiciam isso não por serem estúpidas ou irreais, mas porque tem uma forma tão familiar de serem contadas, pelo menos para mim, que eu me sinto em território conhecido. Enfim, já li dezenas de livros dela e conforme me seja possível vou escrever sobre eles aqui.
             Poirot e o mistério da arca espanhola £ outras histórias se sobressaiu na biblioteca porque eu amo Poirot, o detetive mais famoso da rainha do crime. Só que como eu já li um monte de seus livros, achar uma história inédita na qual ele participe é um pouco complicado para mim por requerer uma certa procura. Por isso, o título encheu meus olhos, digamos assim.
           Na verdade, o livro é uma compilação de nove histórias e é somente em uma delas que Poirot aparece. Quem está familiarizado com Agatha vai perceber que ela adota um tom diferente nessas pequenas narrativas. Há uma abordagem mais psicológica e, portanto, mais profunda dos personagens. A maior parte da ação se dá na mente dos protagonistas, principalmente em A casa dos sonhos e Dentro de uma parede.
               Adorei a lição por trás de O limite, cuja breve discussão sobre a loucura me prendeu bastante. Já A atriz e O ouro de Manx não conseguiram me cativar, especialmente o último. O deus solitário tem aquele adorável romantismo clássico de Agatha, simples e cativante, e O jogo de chá do arlequim conseguiu me marcar, graças a rara aparição de Harley Quinn. Por incrível que pareça, Poirot e o mistério da arca espanhola foi simplesmente mais do mesmo, com um desfecho de certa forma previsível e com a típica personagem femme fatale sobre a qual Agatha tanto gosta de dissertar através de seu brilhante detetive. Destaque para Enquanto a noite durar, a joia da coroa, breve e bela.
             Não falo nada mais específico sobre os enredos porque tiraria toda a graça. Diria que é um livro adequado para ser lido na fila de espera do banco ou no ônibus a caminho da faculdade. Uma leitura agradável.

terça-feira, 10 de julho de 2012

UMA BIOGRAFIA ESTRANHA


Pode parecer pieguice minha, mas aquele momento no qual, sem indicação alguma, escolho um livro dentre os milhares de uma livraria, só por uma atração que acontece, por assim dizer, é um momento de pura magia. Você poderia ter escolhido ler a sinopse daquele livro na vitrine ou daquele com a capa super chamativa logo na prateleira a altura dos seus olhos, mas pegou aquele meio empoeirado da prateleira de baixo, leu as orelhas, o primeiro capítulo e quando viu estava sentada no chão lendo com sofreguidão e pensando “tem que ser meu”.
Bom, tenho de convir, mesmo pra mim que sou rato de biblioteca achar uma paixão dessas por acaso não é comum. Normalmente, você já vai com uma listinha de opções para ler/comprar e se guia por ela. Sorte a minha, em maio encontrei uma dessas maravilhas em minhas andanças pela livraria cultura. A obra-prima (não tenho como usar outro termo e logo você vai saber por que) pode assustar alguns com suas mais de 600 páginas, mas prende o leitor do começo ao fim. O IMPERADOR de TODOS os MALES {Uma biografia do CÂNCER}, do oncologista indiano Siddhartha Mukherjee, à primeira vista, é uma obra para os da área da saúde (e realmente foi encontrado na seção de medicina). Entretanto, as primeiras páginas logo derrubam essa barreira e fazem com que o leitor mergulhe na apaixonante história do câncer – e da humanidade- para emergir apenas ao final da última página.
Merecidamente, essa estranha biografia, que acompanha a história do câncer desde o primeiro relato médico de um tumor feito há 4 500 anos, rendeu ao autor o prêmio Pulitzer de não ficção de 2011. O livro é uma deliciosa mistura de ciência, história, política e os bastidores por trás de tudo isso. A construção dos capítulos é de uma técnica primorosa, alternando histórias sobre pacientes com câncer que o autor tratou ou não, descobertas científicas, importantes momentos históricos e mini biografias dos grandes médicos e cientistas por trás dos estudos e do tratamento do câncer.
Acompanhar a longíssima “vida” do câncer é como acompanhar a trajetória de um personagem que sobrevive a todas as eras e que, pior, se fortalece com o passar dos tempos. Embora remonte aos primórdios da humanidade, o câncer é um medo do homem moderno. Conforme a humanidade conjuntamente envelhece, a temível doença ganha cada vez mais força. Não é á toa que, em 2010, mais de 7 milhões de pessoas morreram de câncer no mundo. E, conforme Siddhartha, esses números tendem a aumentar.
Todos nós conhecemos alguém que já teve câncer, próximo ou não. Mais do que a própria morte, o que nos aterroriza é o angustiante processo de morrer que acompanha a enfermidade e que termina com alguns pacientes voltando à vida e outros pondo um ponto um final a jornada. O livro nos permite acompanhar algumas dessas pessoas em sua luta para sobreviver, em sua sobrevida ou, em muitos casos, em sua morte. Só pra dar um gostinho, um dos trechos que eu mais gostei:

“Esse serviço fúnebre improvisado mexe conosco. Eu me junto a eles, recitando os nomes de meus pacientes que morreram e acrescentando uma ou duas frase em memória de cada um.
Kenneth Armor, 62 anos, câncer de estômago. Em seus últimos dias, tudo o que queria era tirar férias com a mulher e ter tempo para brincar com seus gatos.
Oscar Fisher, 38 anos, tinha câncer de pulmão de pequenas células. Deficiente cognitivo desde que nasceu, era o filho predileto da mãe. Quando morreu, ela enfiava rosários entre seus dedos.
Aquela noite fico sentado sozinho com minha lista, lembrando nomes e rostos até tarde. Como é que se presta homenagem fúnebre a um paciente? Esses homens e mulheres foram meus amigos, meus interlocutores, meus mestres – uma família substituta. Levanto-me junto à minha escrivaninha, como se estivesse num funeral, as orelhas quentes de emoção, os olhos rasos de lágrimas.”

A leitura é enriquecedora de muitas outras maneiras, mas acho que com isso já se pode decidir sobre ler ou não esse livro. Pode ser lido tranquilamente por um leigo que goste de ciência e de história. Prepare-se para derramar algumas lágrimas, rir um pouco e se espantar com o submundo por trás do câncer. Impossível de se arrepender.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Por conta da imaginação...

O primeiro livro do ano é um clássico da literatura universal. Aviso de antemão que a obra tem um grande problema: não tem final. Nikolai Gógol planejou escrever uma trilogia sobre a vida na Rússia feudal, mas não conseguiu realizar seu sonho, tendo deixado para nós apenas a primeira parte da história e uns capítulos da segunda. Isso não tira a majestade do texto, mas decepciona um pouco quando ficamos sem saber o destino do herói.

“Almas Mortas” foi lançado em 1842 e é um dos principais precursores do realismo russo. Foi uma narrativa difícil de acompanhar porque muitas palavras me eram desconhecidas, então se você for lê-lo recomendo que esteja com um bom dicionário a postos. Se quiser fazer quadros mentais nítidos da paisagem, o computador também será essencial, pois muitas das árvores e flores descritas não são vistas nessa parte do mundo. Mas vamos então para a história.

O personagem principal, Pável Ivánovitch Tchítchicov, é tão malandro que bem poderia ser brasileiro. Tentando comprar “almas mortas”, ou seja, servos mortos que ainda não tinham entrado no último recenseamento, nosso herói cruza a Rússia na sua sege junto com seus dois empregados. Suas viagens nos permitem conhecer personagens cada vez mais pitorescos, embora ao mesmo tempo sejam dignos de pena.

A cidade de N. é a primeira parada do protagonista. É uma típica cidade provinciana, cheia de mesquinharias e fofocas. Tchítchicov, com seu jeito amável, logo se faz querido dos moradores, principalmente daqueles que ocupam os cargos mais altos do funcionalismo público, porque são os que ele bajula mais. Ao descrever suas transações com estes personagens, Gógol faz um quadro mordaz da corrupção da burocracia na Rússia Czarista. As cenas que ilustram essa corrupção são narradas sutilmente, mas um pouco de atenção nos revela o tom sarcástico do escritor. Confesso que poucas vezes me deparei com uma ironia tão fina, acredito que nem mesmo Dostoiévski consegue escrever como ele.

O porquê de Tchítchicov comprar almas mortas só é revelado no fim da primeira parte. Dessa forma, acompanhamos sua peregrinação pelas casas dos pomiêchtchiki – grandes proprietários rurais – sem entender porque ele insiste tanto em comprar os mortos. Cada encontro com um fazendeiro é uma experiência diferente. Uns são bobos, outros loucos, outros pobres e outros ricos esbanjadores, enfim, é um quadro e tanto dessa classe russa.

Mas os melhores momentos vêm logo a seguir, quando os moradores de N. descobrem o estranho negócio que o recém-chegado anda fazendo. Como o leitor, eles também não entendem para que servem os servos mortos e desconhecem a história de vida de nosso herói. Assim, as mais estapafúrdias identidades são dadas a Tchítchicov, alguns chegando a pensar que ele é o próprio Napoleão. Essas cenas são simplesmente hilárias, não parei de rir enquanto lia. Mais uma vez tenho que elogiar Gógol pela excelente qualidade do seu humor.

Transcrevo a seguir uma parte da cena:

“Entre diversas hipóteses bastante interessantes surgiu por fim uma, que fica até estranho mencionar: se não seria Tchítchicov outro senão Napoleão disfarçado; que há muito tempo os ingleses invejam à Rússia a sua extensão e vastidão, ao ponto de já terem aparecido caricaturas onde se via um russo conversando com um inglês: o inglês está de pé, com a mão atrás das costas, segurando um cão, e o cão representa Napoleão, e o inglês diz ao russo: ‘Olha aqui, cuidado, se não te comportas, solto o cachorro em cima de ti!’. E então, quem sabe agora eles soltaram o cão da ilha de Santa Helena e o açularam sobre a Rússia, e agora ele está penetrando na Rússia como Tchítchicov, mas na realidade não é Tchítchicov coisa nenhuma.

Está claro que os funcionários não acreditaram nisso; todavia, ficaram pensativos, e cada um, examinando o caso consigo mesmo, achou que o rosto de Tchítchicov, se ele se virasse e ficasse de lado, lembrava muito o retrato de Napoleão. O chefe de polícia, que estivera na campanha de 1812 e vira Napoleão em pessoa, não podia sequer deixar de confessar no seu íntimo que Napoleão não era mais alto que Tchítchicov, e que a sua compleição física também era do tipo que não se pode chamar de gordo demais, mas tampouco se pode dizer que seja magro demais.”

Pável Ivánovitch, vendo que estão começando a desconfiar de seus “negócios”, parte às pressas da cidade, da qual não voltamos mais a ter notícias. Durante o caminho, o escritor finalmente nos revela quem é ele de verdade e qual seu interesse em comprar servos mortos. A história de vida de Tchítchicov é simples e trágica: um pai ausente, maus conselhos, privações e uma série de aspectos que resultam numa ambição desenfreada. Ao descrever suas andanças pelo serviço público mais uma vez nos deparamos com a sórdida corrupção da burocracia russa. Mas sinceramente, aqui não é muito diferente, é?

Segundo o narrador, Tchítchicov compra almas mortas a preço de banana para depois vendê-las ao estado e com isso fazer muito dinheiro. Como as almas ainda não estavam recenseadas, ele pode vendê-las como se fossem servos vivos. Simples e escuso. Feito esse esclarecimento, acaba-se a primeira parte.

Sobre a segunda parte não vou falar muito porque é bastante incompleta. Surgem novos personagens, alguns fascinantes, mas só podemos ter um breve vislumbre deles já que esta só conta com alguns capítulos completos. Tchítchicov continua comprando as almas mortas, mas agora tem outro interesse em vista: quer se tornar um pomiêchtchiki.

Muitos estudiosos afirmam que Gógol perde o tom nessa parte e realmente algumas cenas têm uma abordagem tão diferente que parecem de outro livro. Apesar disso, adorei alguns momentos e reflexões e sinto uma pena imensa que Gógol não tenha terminado a história. Abaixo transcrevo um trecho dessa segunda parte:

“Andrei Ivánovitch sobressaltou-se. Pensou que se tratava de um funcionário do governo. Aqui é preciso contar que, na juventude, ele andara envolvido em certo caso pouco sensato. Dois hussardos de tendências filosóficas, influenciados pela leitura de certas brochuras, um estudante de estética que não concluíra o curso e um jogador falido fundaram uma espécie de organização filantrópica sob a direção e supervisão de um malandro velho, maçom e também jogador, mas homem de grande eloquência. Essa sociedade propunha-se uma ampla finalidade: proporcionar felicidade duradoura a toda a humanidade, desde as margens do Tâmisa até a península de Kamtchatka. A caixa de fundos requerida era enorme: angariavam-se donativos descomunais das almas generosas. Onde foi parar esse dinheiro, só o sabia o dirigente supremo da sociedade. E para essa sociedade atraíram-no os seus dois amigos, pertencentes à categoria dos homens revoltados, bons rapazes, mas que, graças às frequentes libações em nome da ciência, da instrução e dos futuros serviços à humanidade, transformaram-se em autênticos beberrões.”

Infelizmente, como eu havia dito, não existe um final escrito. Cabe a nós, leitores, darmos asas a nossa imaginação para que esta elabore uma conclusão para a história de Tchítchicov. Para mim, este livro é mais bem lido em casa, com concentração e relaxamento. Eu precisei de dicionário e acho que muitos também precisarão. Pra quem quiser curtir um pouco do texto, acesse o link: http://www.youtube.com/watch?v=AJPX1hZ6xos. Dá até pra ouvir russo, bem legal. Abaixo confira um resumo da história do escritor.

A VIDA DO GÊNIO

Nikolai Gógol nasceu no dia 20 de março de 1809, em Poltava, Ucrânia. De uma família de médios proprietários rurais, foi muito influenciado pelas tradições do povo cossaco, nativo das regiões do sudoeste da Europa, principalmente do país natal do escritor.

Aos 19 anos parte para São Petersburgo, onde emprega-se como funcionário público. Nessa época inicia sua carreira literária, com narrativas inspiradas no folclore ucraniano. Desistindo da burocracia, torna-se professor de História num internato de raparigas e, mais tarde, dá aulas na Universidade de São Petersburgo.

Em 1836, encena-se pela primeira vez sua peça de teatro “O Inspetor”, uma grande sátira à corrupção da burocracia russa. Muito criticado pela peça, Gógol passa os quatro anos seguintes viajando pela Europa.

“Almas Mortas” é a obra-prima do escritor, mas também é uma das causas de sua morte prematura. Seus últimos anos são gastos escrevendo e reescrevendo a trilogia, que só tem a primeira parte publicada, em 1842. Gógol chegou a escrever a segunda parte, mas num acesso de loucura mandou seu empregado queimar o manuscrito, do qual só nos sobraram alguns capítulos. Nikolai Gógol morre em março de 1852, prestes a completar 43 anos, num estado de semiloucura. Instigado por um misticismo desenfreado, reza e jejua de tal forma que acaba por entrar em um estado de lenta agonia, da qual só se liberta com a morte.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O porquê.

Ler é uma das coisas mais saborosas da vida, não é? Nada como viver aquela aventura que sua humilde vida jamais abarcará. Nada como se extasiar com uma paixão que poucos têm a chance de experimentar. Entretanto, para mim, parte do prazer de ler um livro está no ato de discuti-lo. Quais suas influências, o que foi dito sobre ele ao ser lançado, as particularidades do escritor..., ou seja, tudo.

Assim que eu termino uma história me lanço numa pesquisa que só tem fim quando eu sacio minha curiosidade. Mas toda essa descoberta fica perdida se eu não tenho com quem compartilhá-la. Como minha mãe já não me aguenta porque diz que minhas conversas sempre giram em torno do livro que estou lendo, decidi criar esse blog.

Queria um título que conseguisse transmitir a minha ideia do que é um livro. Adorei a forma como a palavra “himeneu” soa desde o momento que a li pela primeira vez. Mais interessante é sua origem: Himeneu é o deus grego do casamento, um belo jovem convocado durante as cerimônias, já que sua ausência resultaria em um matrimônio desastroso. Dito isso, dentre os vários significados, “himeneu” poderia ser definido com sinônimo de casamento. E um livro é isso, simplesmente, um himeneu das palavras. Pode ser desastroso, como tive a oportunidade de comprovar diversas vezes, mas pode ser eterno e uma experiência arrebatadora.

Ler um livro é também uma cerimônia de casamento. Alguns se transformarão no ex-marido odiado; outros serão aquela breve, mas suave lembrança de um momento de sua vida; entretanto, alguns poucos serão seus companheiros durante o resto da jornada, serão aqueles grandes amantes, melhores amigos, únicos consoladores.

Enfim, queria compartilhar um pouco das minhas experiências no mundo da literatura: esse mundo que é o nosso, mas ao mesmo tempo não é. Enjoy it.