sexta-feira, 27 de julho de 2012

Alguns dias de paixão

      Apaixonar-se por alguém ou por algo é uma das sensações mais sublimes e desesperadoras pela qual o ser humano tem de passar. Depois de muito tempo sem sentir essa sensação, tenho que confessar que eu me apaixonei. Durante três dias, só pude pensar em uma única coisa: no livro Precisamos falar sobre o Kevin. Ao comer, ao assistir a cobiçada versão estendida de O Senhor dos Anéis, ao dirigir... o único que podia fazer era refletir sobre a triste história da família Khatchadourian. Parece exagero? Então deixa eu te falar um pouco sobre essa obra magistral.
      Eva Khatchadourian é uma mulher do século XXI, embora temporalmente sua vida se restrinja às décadas finais dos 1900. Fundadora de sua própria empresa, é bonita, inteligente, bem-sucedida e feliz no casamento. Seu marido, Franklin, é um norte-americano típico, patriota, jogador de beisebol inveterado, enfim, o oposto de Eva. Em todo caso, eles eram felizes. Não tinham filhos, mas estavam satisfeitos. Porém, como tudo nessa vida, um olhar mais profundo revelava que algo fazia falta aos dois. O que era? Um filho, talvez? Tentando chegar a uma resposta, Eva, que perto dos 40 ainda não sentia nenhum impulso maternal, decide engravidar. E é em torno do fruto dessa gestação, Kevin, que a gira a narrativa. 
      A história é contada através de cartas escritas por Eva para seu marido. Nelas, essa mãe angustiada revisita toda a sua vida e a de sua família para tentar entender o que levou Kevin, aos 15 anos, a matar nove pessoas dentro de sua escola. Tenho que dizer que nunca simpatizei tanto com um narrador. Cruamente, Eva vai analisando cada evento, cada gesto, cada emoção, o que nos proporciona um texto de uma sinceridade arrebatadora.
      Mais do que analisar a sua própria história, Eva reflete profundamente sobre um dos maiores pilares -  e tabus - da humanidade: a maternidade.  Ao romper o laço mais sagrado de todos, ao não sentir amor pelo próprio filho, essa mulher consegue nos fazer pensar sobre algo que não se deve pensar. Ser mãe é lindo, maravilhoso, inestimável e pronto. Eva nos questiona: é tão simples assim?
      Apesar disso, a ponderação sobre a maternidade é apenas o ápice de reflexões mais profundas sobre a vida em família e sobre as emoções que se escondem sob a superfície do ser humano. Só posso afirmar que foi um gosto acompanhar o pensamento dessa mulher, cujo digladiar interno nos fornece uma das histórias mais brilhantes que tive o prazer de ler. Como sempre, abaixo vai um dos trechos que mais gostei:

"Portanto, meu receio não era apenas de virar minha mãe, eu temia ser mãe. Tinha medo de me tornar aquela âncora segura e estacionária que fornece a plataforma para a decolagem de mais um jovem aventureiro, cujas viagens eu talvez inveje e cujo futuro ainda não tem amarras nem mapas. Tinha medo de virar aquela figura arquetípica na soleira da porta - desmazelada, meio gorda - que acena adeuses e manda beijos enquanto uma mochila é posta no porta-malas; que enxuga os olhos com o babado do avental sob a fumaça do cano de escape; que se vira, desolada, passa o trinco na porta e vai lavar os poucos pratos que restaram na pia, sob um silêncio que pesa sobre a cozinha como um teto caído. Mais do que partir, eu tinha pavor de ser deixada. [...]
Franklin, eu tinha verdadeiro pavor de ter um filho. Antes de engravidar, minha visão do que significava criar uma criança - ler histórias sobre trens e casinhas com um sorriso no rosto, na hora de dormir, enfiar papinhas em bocas escancaradas - parecia ser a de outra pessoa. Eu morria de medo de um confronto com meu próprio egoísmo e falta de generosidade, com o poder denso e tardio do meu próprio ressentimento. Por mais intrigada que estivesse com o 'virar da página', sentia-me mortificada com a perspectiva de me ver irremediavelmente encurralada na história alheia. E creio que foi esse terror que talvez tenha me atraído, da mesma forma como um parapeito nos tenta a dar o salto. A intransponibilidade da tarefa, sua falta absoluta de atrativos, foi o que, no fim, me seduziu."

      Acho que eu não poderia dizer mais nada sem desfazer um pouco o mistério do livro, então vou me restringir a isso. Super indicado para todos, é uma leitura tranquila, nada de dicionários e referências obscuras, mas, se você realmente quiser entender sobre o que Eva está falando, tem de parar por um momento para refletir e absorver suas palavras - a leitura é quase que um exercício filosófico. Simplesmente é um livro que se deve ter na estante. Eu já estou providenciando o meu.

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